terça-feira, 19 de outubro de 2010

Valor e qualidade ao paciente como novo desafio da gestão em saúde

Publico, na íntegra, a entrevista do Guru da Estratégia, Michael Porter, à revista EXAME, edição 907 / Ano 41 Nº23 em 05/12/07; falando deste novo modelo competitivo.

A palestra de Porter encerrou em grande estilo o terceiro e último encontro de Repensando a Saúde, evento promovido pela Amil com o objetivo de discutir problemas e apontar soluções para aprimorar o sistema brasileiro de saúde. Nas duas primeiras etapas – realizadas em julho e setembro, em São Paulo e no Rio de Janeiro – os principais agentes do setor protagonizaram os debates. E parte desta reflexão foi levada a Porter, que após sua exposição respondeu a perguntas formuladas por Antonio Jorge Kropt, diretor técnico da Amil Brasil, que atuou como mediador nas três etapas do projeto. Nas páginas seguintes, além de um resumo das instigantes idéias debatidas no evento, você terá a oportunidade de ler uma entrevista exclusiva com Michael Porter, na qual ela defende a necessidade de colocar a teoria em prática e, assim, “fazer acontecer”.

A primeira apresentação coube a Rob Dhole, presidente da divisão de saúde do Omnicom Group, conglomerado de comunicação e marketing que atua em mais de cem países e controla algumas das maiores agências especializadas em saúde. “Há duas coisas que não devem ser feitas numa palestra”, disse Dhole, olhando para o relógio. “Uma é falar quando estão todos com fome, a outra é falar sobre estratégia antes de Michael Porter.”

Embora tenha tomado base seu livro sobre competição no setor, Porter incluiu insights sobre o modelo brasileiro de saúde em sua palestra.

Foi a senha para ganhar a simpatia da audiência para sua exposição sobre o papel da propaganda como força complementar às campanhas públicas que informam a população sobre prevenção e cuidados com a saúde. “Informações para os pacientes são fundamentais, mas a motivação vem da estratégia e da arte de uma boa propaganda”, afirmou Dhole, para quem questões de foro pessoal, como parar de fumar, são mais difíceis de combater. “Será que sempre cuidamos de nossa saúde como deveríamos: Com um estímulo grande e uma boa propaganda é bem mais fácil. Alguns anúncios são nitidamente de ajuda pública”, concluiu ele.

MODELO ANALÍTICO

Presidente do Grupo Amil e autor da apresentação da edição brasileira do livro de Porter sobre a saúde, Edson Bueno subiu ao palco para dar as boas vindas ao aguardado convidado da noite. “Não existe maneira de fazer qualquer análise no sistema de saúde sem passar pelo modelo Porter”, disse Bueno, antes de anunciar aquele que “é considerado o estrategista e guru número um da atualidade.”

Entre tímido e vaidoso, como a maioria dos intelectuais, Porter agradeceu os elogios, olhou rapidamente para o horizonte e logo deu início à sua densa exposição da necessidade de adotar uma nova perspectiva para encarar a saúde, com foco na geração de valor ao paciente. “As pessoas querem saúde, e não o sistema de saúde, remédios e tratamentos. O problema é que não estamos organizados para oferecer um atendimento melhor. Estamos prestando os serviços de forma arcaica e ineficiente, com um pensamento empresarial de séculos atrás”, afirmou. “O Brasil tem médicos, hospitais e remédios ótimos. Mas falta estratégia, visão de como transformar a saúde no país, produzindo os resultados que precisamos.”

Porter acredita ser possível transformar o sistema de saúde não apenas no Brasil, mas em qualquer país. Segundo ele, para isso é preciso mudar a organização do sistema como um todo, sempre tendo em vista a geração do valor. Na opinião do acadêmico, hoje aquilo que o paciente recebe não é suficiente em comparação ao dinheiro gasto.

Afinal, o que deve ser feito para melhorar o valor e diminuir os gastos? Para Porter, cortar custos não é a melhor maneira de solucionar o problema. Mas sim oferecer saúde de melhor qualidade. “O nível de saúde tem de ser melhor para o avanço de todo o sistema. Prevenção, impedir que as doenças aconteçam – vacinas, campanhas, detecção precoce -,isso é bem mais barato e eficiente. Se a doença é descoberta tarde, é muito mais caro e debilitante para o paciente e todo o sistema.”

VISÃO INTEGRADA

Embora defenda a cobertura universal da saúde pelos seguros privados como essencial para o bom funcionamento do sistema, Porter acredita que isso não basta, uma vez que não garante a reforma estrutural do setor de cuidados com a saúde. “O problema é mais profundo e diz respeito ao valor real do serviço prestado”, conceitua. Um de seus argumentos centrais é que a política de incentivos no sistema de saúde está equivocada. “O médico hoje não é recompensado por oferecer valor, nem as seguradoras. A concorrência é de soma zero, não cria valor e ninguém ganha. Assim os serviços ficam restritos e não se tem solução.”

Para ele, o fim da soma zero requer uma mudança de atitude. “Hoje o médico é pago por atendimento, e não por reduzir preços e aumentar valor, o que está muito errado. Precisamos unir esforços para competir e gerar valor para o paciente, melhorando assim todo o sistema.”, defende Porter, para quem a organização da prestação de serviços é a única maneira de oferecer valor ao paciente.

Isso passa, necessariamente, por uma nova visão do sistema, mais integrada, na qual os atendimentos e cuidados com a saúde devem estar coordenados e interligados para tratar o paciente ao longo do tempo. “Assim, pode-se gerar bons resultados para os pacientes e custos mais baixos, ou seja, uma performance eficiente.”

Na opinião de Porter, é preciso haver um ciclo de atendimento para todas as patologias: prevenção, triagem, diagnóstico, tratamento. E, claro, bom gerenciamento. A adoção de uma nova perspectiva sistêmica, de longo prazo, permitiria investir no ciclo de tratamento, com benefícios para todos. “O ciclo tem de ter equipes dedicadas a tratar bem o paciente e combater o sistema fragmentado que existe hoje”, explica ele, para quem a concorrência entre os prestadores de serviços deve ser regional e nacional, não apenas local.”O sistema deve, sim, estar mais próximo dos pacientes, mas a concorrência deve ser mais ampla.” Porter acredita que o uso da tecnologia da informação pode ajudar nesse sentido, oferecendo acesso universal a prontuários eletrônicos, melhor coordenação e possibilidade de acompanhamento de todos. “O Brasil entendeu essa questão e já tem boas iniciativas nesse sentido.”, elogiou.

Depois de dizer que a tomada de decisões estratégicas não pode ser feita com base em conveniências – até porque o consumidor, maior interessado na própria saúde, está cada vez mais exigente -, Porter aproveitou para provocar os gestores brasileiros da área da saúde. “Alguns líderes brasileiros pensam que pagando mal aos médicos estão fazendo um ótimo negócio, mas aí o profissional tem de correr, arranjar três empregos, e atende os pacientes de maneira rápida e pouco eficiente. Isso causa a soma zero.”, resumiu ele, defendendo a necessidade de mudar o sistema. “Mas estou otimista”, concluiu, ao comentar que muitas iniciativas positivas de mudança na área da saúde têm ocorrido em diversos setores e em vários países.

Logo que terminou sua exposição, o pesquisador americano, que atua como consultor de empresa e governos, respondeu a questões complexas que surgiram nas duas etapas anteriores do evento Repensando a Saúde. Formuladas por Antonio Jorge Kropf, diretor técnico da Amil, as perguntas permitiram ampliar a reflexão sobre os numerosos desafios que estão na ordem do dia dos profissionais da saúde – desde como aplicar o conceito de valor de paciente crônico em fase terminal até como mudar o atual modelo de remuneração do sistema.

Um dos temas abordados foi como lidar com a informação médica, considerando o direito do paciente à privacidade e a necessidade do sistema de dispor de informações confiáveis para oferecer um tratamento melhor. Porter defendeu uma abordagem similar a que rege o sigilo bancário, com o uso de senhas por exemplo. Embora reconheça que existam riscos de má utilização dessas informações, ele afirma que devemos confiar na tecnologia computacional. Afinal, sustenta, “o risco de receber um cuidado ruim é maior que o de perder a privacidade.”

Outra questão polêmica levantada foi como convencer os pacientes e demais envolvidos no sistema de saúde sobre o valor do atendimento primário, em unidades integradas de atendimento. Para Porter, o atendimento primário é o que tem maior valor em qualquer sistema de saúde. “No Brasil muita gente não passa por um atendimento primário e vai direto a um especialista, às vezes por motivos errados. Na Suécia e na Alemanha, onde os resultados são bons e os custos baixos, o que torna os sistemas de saúde eficientes é o fácil acesso e a alta qualidade do atendimento primário.” Ainda assim, Porter defendeu que mesmo os cuidados primários devem ter algum tipo de especialização e citou o bem-sucedido modelo adotado pelos países escandinavos.

Promover mudanças profundas não demanda apenas conhecimento e determinação. Muitas vezes a maior barreira a superar é de ordem cultural. “Tenho certeza que você será um dos líderes desse processo no Brasil.”, disse Porter a Antonio Jorge. “Os planos de saúde nos Estados Unidos estão encarando a mudança de uma maneira muito lenta. Eles estão sofrendo para mudar de mentalidade”, disse Porter, para quem a tendência ainda é fazer com que o consumidor pague mais. “Queremos tomar remédios? Queremos ir ao médico? Claro que não! O que queremos é jogar golfe”, concluiu ele, arrancando risos de cumplicidade da platéia.

QUESTÃO DE PRINCÍPIO

“O desafio agora não é mais a radiografia do sistema. A teoria está posta. A tarefa agora é fazer acontecer”, afirma Michael Porter

Em 2004, quando publicou, com Elizabeth Teisberg, um artigo sobre competição no sistema de saúde, Michael Porter achou que não voltaria mais ao assunto. “Estava pessimista. Parecia impossível promover as mudanças necessárias.” Felizmente ele estava errado: nesses três anos, não apenas aprofundou o estudo da saúde como entrou em contato com experiências bem-sucedidas de reestruturação no setor. E foi para falar sobre sua visão estratégica de saúde que Porter abriu uma brecha em sua concorrida agenda e nos concedeu a seguinte entrevista exclusiva.

Se, como o senhor afirma, saúde de qualidade custa menos, não haverá, a longo prazo, menos dinheiro no sistema?

Não devemos assumir que o dinheiro é fixo ou diminuirá. O Brasil, por exemplo, ainda gasta pouco em saúde comparado com outros países. E está se tornando mais rico, o padrão de vida das pessoas vem aumentando. É provável que o país venha a gastar mais com a saúde. E talvez devesse, pois há muitos brasileiros que não tem acesso a bons cuidados. Acho natural que, à medida que uma sociedade enriquece, gaste mais com a saúde.

O senhor tem estudado a saúde em diferentes países. O que aprendeu com esta experiência? Existe um modelo único de sucesso?

Eu acho que é um pouco como a Teoria das Cindo Forças (modelo competitivo criado por Porter em 1979). Não há um único modelo, que se possa dizer: aplique-o a todos os países. O que vemos é que há alguns princípios. Existem princípios sobre o sistema de seguros, sobre como definir cobertura, sobre como fornecedores devem estruturar suas operações, princípios sobre planos de saúde. Toda situação será sempre um pouco diferente, mas passei a acreditar que existem princípios de valor que são universais. Eles se aplicam à Suécia, à Suíça...

Mesmo para sistemas públicos?

Sim. Acreditamos que o fato do sistema ser privado ou governamental não é importante. Trata-se de algo quase secundário. O que importa é como o cuidado à saúde é organizado, a natureza dos reembolsos, a habilidade de integrar o tratamento ao longo do ciclo. Descobrimos que há surpreendentemente pequenas diferenças entre público e privado, nesse campo. Então nosso foco recaiu nos princípios que alinham a entrega da saúde com valor.

E, quanto ao pagamento dos profissionais e das empresas da área da saúde, faz diferença o sistema ser público, privado ou misto?

No Japão, os seguros são provados, alguns dos hospitais são públicos e outros privados. Na Holanda. Muitas partes do sistema são particulares, mas os seguros são públicos. Existe todo tipo de mix. Não é tanto o caso de quem paga quem, mas como se paga. Falamos muito sobre o modelo de pagamento por serviço, que não funciona.

Explique melhor, por favor.

Não importa se você é o governo brasileiro pagando a taxa por serviço do SUS, ou se é o Medicare dos Estados Unidos pagando uma taxa por serviço a um hospital particular. É o modelo de pagamento por serviço que está equivocado, não quem paga. Nós acreditamos que os princípios que organizam a saúde se aplicam a todo tipo de sistema, não importa quem seja seu dono. O desafio é partir de onde se está hoje para as modificações. Os desafios de implementação no Reino Unido, onde a maior parte do sistema é operada pelo governo, são distintos dos de Taiwan, por exemplo, onde muitos dos hospitais são privados.

O senhor poderia resumir estes desafios?

O desafio agora não é a radiografia do sistema. O desafio real é a implementação. Como você de fato mede resultados, coleta dados, verifica e publica essas informações, como ajusta o risco... Acho que são questões organizacionais, técnicas e médicas. Tenho um colega em Harvard – Jim Kim, um reconhecido líder em saúde global - que diz que precisamos criar uma nova ciência da entrega. Não sei se devemos chamá-la assim, mas acredito que ele está certo. Acho que a ciência médica evoluiu muito mais do que as organizações, em termos estratégicos. Acho que uma reestruturação é necessária.

E o que pode ser feito nesse sentido?

Agora a tarefa não é a teoria, pois a teoria está posta. A tarefa agora é fazer acontecer. Vou dar um curso em janeiro, em Harvard, sobre a entrega de valor em saúde, com dez bem-sucedidos estudos de caso. Daí entenderemos melhor como as coisas funcionam.

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